O Estranho Fenômeno do CAC Desarmamentista
Entre as muitas contradições que o Brasil abriga, poucas são tão curiosas quanto a do atirador esportivo desarmamentista. Trata-se de um cidadão que, apesar de fazer parte da categoria CAC — caçador, atirador e colecionador —, defende medidas cada vez mais rígidas para o acesso legal a armas de fogo no país. Ele frequenta clubes de tiro, treina, investe em armamento de ponta, muitas vezes importado, e paga caro por isso. Mas, curiosamente, apoia propostas que tornam esse mesmo acesso mais difícil, oneroso e burocrático — não apenas para si, mas para todos.
Esse sujeito, por vezes, defende a exigência de exames toxicológicos recorrentes, pareceres psiquiátricos anuais, taxas mais altas, maior controle do Exército, entre outras barreiras. A justificativa? A ideia de que assim estaremos “filtrando” melhor quem pode ter uma arma. O curioso é que, na prática, essas medidas atingem justamente o cidadão comum, legalista, que busca exercer seu direito dentro da lei — e não o criminoso que compra sua arma na boca de fumo, sem CR, sem nota fiscal, sem nada.
A ÓTICA LÓGICA
Do ponto de vista lógico, há um descompasso evidente. Não há estatísticas que comprovem que CACs cometem crimes armados sob efeito de drogas. Ao contrário: os índices de envolvimento de atiradores esportivos legalmente registrados em crimes são ínfimos. Isso é fato. Portanto, exigir exames toxicológicos periódicos soa mais como uma medida estética — “para parecer que se está fazendo algo” — do que uma ação baseada em evidências.
Se a questão é impedir que pessoas sob efeito de entorpecentes tenham acesso a armas, então o combate deveria focar o tráfico, e não o cidadão que frequenta clubes de tiro, segue regras e passa por uma série de exames e autorizações prévias. O criminoso armado, afinal, não tira CR, não paga taxa, não faz laudo psicológico.
A ÓTICA ECONÔMICA
Aqui entra outro ponto: o custo. Equipamentos, munições, documentações, renovação de CR, deslocamento até clubes credenciados, exames, treinamento, manutenção — ser atirador esportivo no Brasil já não é barato. Tornar tudo isso ainda mais caro e burocrático cria um filtro financeiro: só permanece no sistema quem pode arcar com os custos. E parece que muitos desses atiradores desarmamentistas se sentem confortáveis com isso. Como se, no fundo, houvesse um certo prazer em pertencer a um clube restrito, quase aristocrático, de pessoas que “venceram” todas as barreiras.
Há quem diga que isso gera um tipo de elitismo dentro do tiro esportivo. Um desejo inconsciente (ou não) de que o acesso não seja para todos, mas para poucos. Para os “responsáveis”, “treinados” — geralmente eles mesmos.
A ÓTICA PSICOLÓGICA
Do ponto de vista psicológico, esse fenômeno pode revelar traços interessantes. Um deles é a racionalização do privilégio: a pessoa que já superou todas as exigências tende a validá-las, mesmo que sejam excessivas. Afinal, admitir que eram desnecessárias ou injustas colocaria em xeque sua própria trajetória. Outro aspecto é a identificação com a autoridade: muitos atiradores esportivos vêm de áreas militares, policiais ou têm admiração por essas instituições, e podem ver a regulação pesada como uma forma de ordem — mesmo que disfuncional.
Há ainda uma certa vaidade envolvida: o armamento caro, o colete tático, a precisão dos disparos — tudo isso compõe uma estética de superioridade técnica e moral que pode reforçar a ideia de que “nem todos estão prontos” para ter uma arma. “Eu estou. Os outros, não.”
A ÓTICA SOCIAL
Esse fenômeno também revela o distanciamento entre diferentes estratos sociais dentro do mesmo grupo de interesse. Há o CAC que é empresário, servidor público bem remunerado, herdeiro ou militar da reserva, e há o trabalhador comum, o microempresário do interior, o vigilante noturno. Para este último, o aumento de exigências representa, muitas vezes, o fim do sonho de praticar o tiro esportivo ou ter uma arma para defesa pessoal de forma legal.
O resultado? Um sistema que desincentiva o cidadão legal e fortalece o mercado ilegal. Quanto mais difícil for o acesso legal, mais se abrirá espaço para o mercado negro, onde não há psicotécnico, laudo, exame toxicológico ou qualquer outro entrave.
A ótica política
Por fim, há também o componente político. O atirador desarmamentista, em geral, tenta agradar dois mundos: quer manter seu direito à arma, mas sem parecer “radical”. Adota o discurso da responsabilidade, da ponderação, da moderação. Mas, sem perceber, muitas vezes legitima um modelo em que o Estado pune o cidadão que cumpre a lei e ignora o bandido que a despreza.
Essa figura híbrida vive o paradoxo de amar o esporte, mas apoiar regras que podem acabar matando a própria prática — ao menos fora de uma elite economicamente blindada.
O QUE PODEMOS CONCLUIR DISSO?
O atirador desarmamentista é, antes de tudo, um personagem sintomático de um país confuso quanto aos próprios direitos. Ao defender mais obstáculos para algo que pratica e aprecia, ele contribui — ainda que involuntariamente — para a criminalização progressiva do cidadão comum.
Talvez falte a ele uma reflexão mais ampla: segurança pública se constrói com liberdade, responsabilidade e coerência — não com barreiras estéticas que só penalizam os que seguem as regras.

